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Rio, Medo e “Guerra às Drogas”: Saúde Mental após 28/10

Por Isabelle Paiva (CRP 06/167435) – Psicóloga clínica (Gestalt-terapia)


Em 28 de outubro de 2025, o Rio de Janeiro vivenciou uma operação policial de grande escala nos complexos do Alemão e da Penha. Os números reportados (AP, Reuters, Agência Brasil), dezenas de mortes, mais de 80 prisões, 2.500 agentes,são mais do que estatísticas; são o retrato de um evento crítico.

Para a psicologia, eventos desta magnitude não podem ser banalizados como "rotina". Quando escolas fecham, postos de saúde interrompem o atendimento e moradores relatam horas de medo intenso, estamos falando de produção de sofrimento psíquico em massa.

Como psicóloga clínica, meu compromisso ético-técnico é analisar para além dos fatos imediatos. Eventos assim são potencialmente traumáticos, não apenas pelo que causam no presente, but pelo que reativam de uma história de violência. É impossível dissociar o cuidado em saúde mental do contexto social, político e racial que o determina.


O Contexto Histórico: A Seletividade da Política de Drogas

O 28/10 não é um ponto fora da curva; é a expressão aguda de uma política de "guerra às drogas" que, no Brasil, tem alvo, classe e cor. A literatura acadêmica e os dados de segurança pública são inequívocos.

  • Viés de Raça e Classe: Os Anuários de Segurança Pública (FBSP) demonstram consistentemente: a maioria esmagadora das vítimas de intervenções policiais é negra. Estudos empíricos (como o de Reis, 2023) mapeiam um viés racial que se inicia na abordagem e persiste até a sentença judicial, muitas vezes independentemente da quantidade de droga portada.

  • A Lei de Drogas (Nº 11.343/2006): A lei falhou em seu pretenso objetivo de separar "usuário" de "traficante". Ao não definir critérios objetivos, ela entregou, como aponta L. Boiteux (2006; 2015), uma discricricionariedade imensa à ponta do sistema (policial e judicial), que a utiliza para reproduzir desigualdades e sustentar o encarceramento em massa.

  • Encarceramento Feminino: O impacto de gênero dessa lei é devastador, sendo ela a principal vetor do aumento do encarceramento feminino nas últimas décadas, atingindo mulheres pobres em posições subalternas do varejo de drogas.

  • O STF e a Cannabis (Tema 506): A decisão do STF em 2024 (confirmada em 2025), fixando 40g ou 6 plantas fêmeas como parâmetro presuntivo para diferenciar uso de tráfico de cannabis, foi um marco. Ela não legaliza, mas reconhece a urgência em reduzir a arbitrariedade e a seletividade racial da lei de 2006, um entendimento já ecoado em decisões do STJ.

Historicamente, enquanto o Brasil aderia a marcos proibicionistas focados na repressão, o SUS, nos anos 1990, via nascer experiências de Redução de Danos (como em Santos, 1989, ligada ao HIV/Aids), mostrando que outro caminho era possível (Passos, 2011; BVS/MS, 2004).


O Peso para a Comunidade: Do Trauma Contínuo ao Adoecimento

Em dias de violência aguda, o corpo e a mente não voltam ao normal. O impacto psicossocial é vasto. Este não é apenas o trauma de um evento pontual, mas a reativação de um trauma coletivo e contínuo, resultante de viver sob a lógica da "guerra". O estado de alerta não é uma exceção; torna-se a regra.

  • Indivíduos: Vemos o aumento de hipervigilância, insônia, irritabilidade, medo de circular pelo próprio bairro e o desenvolvimento de lembranças intrusivas (flashbacks) e transtornos de ansiedade.

  • Crianças: O impacto no desenvolvimento é direto. Observamos regressões de comportamento, pesadelos, medo de separação dos cuidadores, queda abrupta na atenção escolar e aumento da agitação.

  • Profissionais: Trabalhadores da saúde, educação e assistência social no território relatam exaustão, sensação de impotência e o "desgaste por empatia" (fadiga de compaixão), minando a capacidade de resposta do próprio sistema.

Este quadro de adoecimento crônico fragiliza vínculos comunitários e destrói a confiança nas instituições. Diretrizes internacionais de Primeiros Cuidados Psicológicos (OMS, 2011; OPAS, 2015) orientam respostas imediatas de escuta, proteção e reconexão com redes de apoio, mas a verdadeira intervenção precisa ser estrutural.


A Resposta pelo Cuidado: O Papel Territorial do SUS

Se a lógica da "guerra" adoece, a resposta deve ser baseada no cuidado. O Sistema Único de Saúde (SUS) possui as ferramentas para isso.


  • RAPS e CAPS AD: A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), instituída pela Portaria 3.088/2011, é a estrutura central. O modelo de cuidado da RAPS é territorial por um motivo: o vínculo é a principal ferramenta terapêutica. Quando a confiança nas instituições é sistematicamente rompida pela violência estatal, o CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas) e a Unidade Básica de Saúde (UBS) precisam ser o "porto seguro" no território, o local da escuta incondicional.

  • CAPS AD III (24h): A Portaria 130/2012, que institui o CAPS AD 24h, é vital. Em momentos de crise aguda como o 28/10, ter um serviço de porta aberta, com acolhimento noturno, é a diferença entre o cuidado e o abandono.

  • Redução de Danos (RD): A RD é uma política pública consolidada no SUS, não uma "opinião" (Fiocruz, 2019). Ela inclui informação segura, manejo de fissura, pactos realistas de cuidado e trabalho com pares. No pós-evento de uma operação, estratégias de RD são fundamentais para proteger vidas e evitar agravamentos.


Caminhos Possíveis: Entre Inteligência e Cuidado

O 28/10 exige uma reflexão sobre quais caminhos realmente promovem segurança.

  1. Na Segurança: Evidências sugerem que o enfraquecimento de redes criminosas é mais eficaz através de inteligência e investigação (foco em fluxos de armas, lavagem de dinheiro e corrupção), em vez de operações bélicas de largo espectro que usam o morador como escudo e geram performance midiática. Transparência e controle externo são vitais.

  2. Na Saúde: O cuidado precisa estar onde as pessoas estão. Isso significa financiar e fortalecer a Atenção Básica, garantir o funcionamento pleno dos CAPS AD (especialmente os 24h) e investir em equipes de rua com trabalho de pares.

  3. No Campo Jurídico: A aplicação de critérios objetivos para diferenciar uso e tráfico, em diálogo com o Tema 506 do STF, é um passo urgente para reduzir a seletividade racial e liberar recursos hoje gastos em repressão para investimentos em prevenção e cuidado.


Considerações Finais

O dia 28/10 evidencia o paradoxo de uma política que promete segurança, mas que, na prática, adoece e mata principalmente quem já vive o fardo da desigualdade estrutural.

Como psicóloga, defendo um compromisso ético e técnico com a proteção da vida e a redução de danos. Isso implica escolhas coordenadas: investigar com inteligência, garantir cuidado no território via RAPS/CAPS AD, realizar resposta psicossocial adequada após eventos críticos e alinhar a legislação para mais justiça e menos arbitrariedade.

Cuidar de pessoas e comunidades é parte essencial da segurança.


Referências 

  • AGÊNCIA BRASIL. Operação no Rio contra facções criminosas registra 64 mortes. Brasília, 28 out. 2025.

  • AGÊNCIA BRASIL. Mortes no Rio ganham repercussão internacional. Brasília, 29 out. 2025.

  • AP (ASSOCIATED PRESS). Huge Brazilian raid on Rio gang leaves at least 64 people dead and 81 under arrest. 28 out. 2025.

  • BOITEUX, L. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. 2006. 273 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo.

  • BOITEUX, L. A desproporcionalidade da Lei de Drogas: os custos humanos e sociais. s.d. Washington Office on Latin America (WOLA).

  • CONASS – CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS DE SAÚDE. CI n.º 90 – Republicada a Portaria GM n.º 130 (CAPS AD III 24h). 28 maio 2013.

  • FBSP – FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025. São Paulo: FBSP, 2025.

  • FBSP – FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Segurança em Números 2025 (infográfico). São Paulo: FBSP, 2025.

  • FIOCRUZ/ EPSJV. Redução de danos no fio da navalha. 26 nov. 2019.

  • GOV.BR – MINISTÉRIO DA SAÚDE. Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

  • MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria GM/MS n.º 3.088, de 23 de dezembro de 2011 (RAPS). 2011.

  • MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria n.º 130, de 26 de janeiro de 2012 (CAPS AD III 24h). 2012.

  • PASSOS, E. H.; SOUZA, T. P. Redução de danos e saúde pública: construções e desconstruções. Psicologia & Sociedade, 2011.

  • REIS, D. O perfilamento racial nos processos de tráfico de drogas. Tempo Social, v. 35, 2023.

  • REUTERS. At least 20 dead in Rio de Janeiro police operation ahead of climate summit events. 28 out. 2025.

  • STF – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 635.659 (Tema 506): Informação à sociedade – Porte de maconha para uso pessoal. 26 jun. 2024.

  • STJ – SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Sexta Turma aplica precedente do STF e afasta condenação por posse de 23 g. 23 ago. 2024.

  • THE GUARDIAN. Brazil: at least 64 reported killed in Rio’s worst day of violence amid police favela raids. 28 out. 2025.

  • WHO – WORLD HEALTH ORGANIZATION. Psychological First Aid: Guide for Field Workers. 2011.

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